sábado, 3 de abril de 2010






Fim








sexta-feira, 2 de abril de 2010




Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei



Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem



E abandonei os jardins do paraíso 
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo



Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento 


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 1 de abril de 2010





É já quase manhã. No tribunal,
o Rabi, sério e grave, entre os maus tratos,
plácido, está de pé ante Pilatos, 

tendo cingida a púrpura real.


Puseram-lhe um caniço em vez de ceptro;
de espinhos um diadema, as sentinelas.
Todo em sangue, o Rabi é um espectro.
Mas a sua alma viaja nas estrelas.



Rugem fora Anciãos e Fariseus. 
Mas não entram, que é sórdido e profano,
na Páscoa, entrar num tribunal romano.
- Proíbem-lho Moisés, Abraão e Deus.



Lá em baixo, a Ralé e os Anciãos,
para quem o Rabi foi como um raio
e um génio de Revolta, erguendo as mãos,

ululam ao Pretor: - Crucificai-o!


Pilatos diz ao Mestre: - «És tu que ouvi
chamar às multidões rei dos Judeus?»
- «Tu o dizes, torna, plácido, o Rabi.
Mas o meu reino é nos calados Céus!



«Não reino sobre o lodo transitório!
A verdade é dos Céus intemeratos.»
- «Mas o que é a verdade?» diz Pilatos.
Dizendo tal, sai fora do Pretório.



Lá em baixo, a Ralé, os Anciãos,
para quem o Rabi foi como um raio
e um génio de Revolta, erguendo as mãos,
ululam ao Pretor: - Crucificai-o!



Então o Pretor diz: «Concedo a vida,
Israel! a teu rei, teu soberano!»
- «É só rei, brada a Plebe enfurecida,
César Tibério, imperador romano!»



O Pretor mostra à Plebe, ensanguentado,
o Rabi - dos espinhos que o consomem -
e mostrando-o assim, trágico e açoutado,
ante o povo judeu, grita: Eis o homem!



- «Herodes não lhe achou nenhum delito
- torna o Pretor. - Portanto, se te apraz,
soltá-lo-ei na Páscoa, como é rito.»
- Mas a Plebe clamou: «Não! Barrabás!»



- «Barrabás é um lívido homicida
sedicioso, bulhento, malfeitor.
Este é o vosso Rabi! e leva a vida,
meditando em seus Céus» - volve o Pretor.



Mas, de novo, a Ralé e os Anciãos,
para quem o Rabi foi como um raio
e um génio de Revolta, erguendo as mãos,
ululam ao Pretor: - Crucificai-o!



«Dai-lhe por manto o sangue em borbotões!
Como soldados, os bastões e os paus!
Por archeiros, mandai-lhe dois ladrões!
E, por trono, o Calvário e os seus degraus!»



Então, de fronte calma e sossegada,
no meio da ansiedade e do clamor,
numa taça real, de ouro, lavrada,
- lava as mãos, ante o Público, o Pretor.


Gomes Leal





Dos amantes dichosos hacen un solo pan,
una sola gota de luna en la hierba,
dejan andando dos sombras que se reúnen,
dejan un solo sol vacío en una cama.

De todas las verdades escogieron el día:
no se ataron con hilos sino con un aroma,
y no despedazaron la paz ni las palabras.
La dicha es una torre transparente.

El aire, el vino van con los dos amantes,
la noche les regala sus pétalos dichosos,
tienen derecho a todos los claveles.

Dos amantes dichosos no tienen fin ni muerte,
nacen y mueren muchas veces mientras viven,
tienen la eternidad de la naturaleza.

Pablo Neruda


terça-feira, 30 de março de 2010





Debrucei minha alma sobre a saudade 
Perdi-me na distância louca dum beijo
Pela ponte da realidade
Nao encontrei no beijo
Mais que a saudade
Intensa dum outro beijo.

segunda-feira, 29 de março de 2010





Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. 
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos 
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis

domingo, 28 de março de 2010




Beija-me 
a primavera cíclica das aves
nos olhos húmidos
de encanto e juventude
e
renasço
na força lírica
dos gritos que se erguem
na manhã clara e mítica
de águas primordiais
e espelhos de Narciso.

sábado, 27 de março de 2010







Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 26 de março de 2010



quinta-feira, 25 de março de 2010




Tu estavas no limite do sonho, 
fronteira do possível 
e da imaginação. 
Eu estava de pé 
de olhos perdidos 
a olhar-te para dentro de mim. 
Tu eras o meu longe,
a minha busca de infinito
e de verdade.
E estavas no limite do sonho
inteiro
como a minha liberdade.

quarta-feira, 24 de março de 2010









Soneto de Jacob, pastor antigo,
- soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!

O que eu servira para viver contigo,
- tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!

E vou sofrendo a minha pena amarga,
- pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!

Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!

António Sardinha


terça-feira, 23 de março de 2010




Sete anos de pastor Jacob servia 
Labão, pai de Raquel, serrana bela; 
mas não servia ao pai, servia a ela, 
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia, 

passava, contentando-se com vê-la; 
porém o pai, usando de cautela, 
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos 

lhe fora assim negada a sua pastora, 
como se a não tivera merecida; 

começa de servir outros sete anos, 

dizendo: - Mais servira, se não fora 
para tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões

segunda-feira, 22 de março de 2010





Tudo o que sou o sou por obra e graça 
da comoção rural que está comigo. 
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.

Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.

Olhai-me: - Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.

«O que estaria além da curva estreita?»
- E da pergunta, a cada instante feita,
nasceu em mim a ânsia p'ra o Infinito.

António Sardinha

domingo, 21 de março de 2010






J'entends ta voix dans tous les bruits du monde.

Paul Eluard


sábado, 20 de março de 2010





Onde porei meus olhos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?



Já sei como s’engana quem deseja,
Em vão amor firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.



Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est’alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;



E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.


Diogo Bernardes

quinta-feira, 18 de março de 2010






E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.



David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 15 de março de 2010


domingo, 14 de março de 2010



Pois desejo primeiro que você ame e que amando, seja também amado. 

E que se não o for, seja breve em esquecer e esquecendo não guarde mágoa.

Desejo depois que não seja só, mas que se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos e que mesmo maus e inconsequentes sejam corajosos e fiéis.

E que em pelo menos um deles você possa confiar e que confiando não duvide de sua confiança.

E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos, nem muitos nem poucos, mas na medida exacta para que algumas vezes você interprele a respeito de suas próprias certezas.

E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo para que você não se sinta demasiadamente seguro.

Desejo depois que você seja útil, não insubstituivelmente útil mas razoavelmente útil.

E que nos maus momentos, quando não restar mais nada, essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante, não com os que erram pouco, porque isso é fácil, mas com aqueles que erram muito e irremediavelmente.

E que essa tolerância nem se transforme em aplauso nem em permissividade, para que assim fazendo um bom uso dela, você dê também um exemplo para os outros.

Desejo que você sendo jovem não amadureça depressa demais,
e que sendo maduro não insista em rejuvenescer,
e que sendo velho não se dedique a desesperar.


Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e é preciso deixar que eles escorram dentro de nós.

Desejo por sinal que você seja triste, não o ano todo, nem um mês e muito menos uma semana, mas um dia.

Mas que nesse dia de tristeza, você descubra que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra com o máximo de urgência, acima e a despeito de tudo, talvez agora mesmo, mas se for impossível amanhã de manhã, que existem oprimidos, injustiçados e infelizes.

E que estão à sua volta, porque seu pai aceitou conviver com eles.

E que eles continuarão à volta de seus filhos, se você achar a convivência inevitável.

Desejo ainda que você afague um gato, que alimente um cão e ouça pelo menos um João-de-barro erguer triunfante seu canto matinal.

Porque assim você se sentirá bom por nada.

Desejo também que você plante uma semente por mais ridículo que seja e acompanhe seu crescimento dia a dia, para que você saiba de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano você ponha uma porção dele na sua frente e diga: Isto é meu.

Só para que fique claro quem é o dono de quem.

Desejo ainda que você seja frugal, não inteiramente frugal, não obcecadamente frugal, mas apenas usualmente frugal.

Mas que essa frugalidade não impeça você de abusar quando o abuso se impuser.

Desejo também que nenhum de seus afectos morra, por ele e por você. Mas que se morrer, você possa chorar sem se culpar e sofrer sem se lamentar.

Desejo por fim que,
sendo mulher, você tenha um bom homem
e que sendo homem tenha uma boa mulher.


E que se amem hoje, amanhã, depois, no dia seguinte, mais uma vez e novamente de agora até o próximo ano acabar.

E que quando estiverem exaustos e sorridentes, ainda tenham amor pra recomeçar.

E se isso só acontecer, não tenho mais nada para desejar.

Sérgio Jockymann